Caliandra

Que as apostas se tornaram uma febre no Brasil, não há dúvidas. Mas os impactos reais para a saúde mental da população e, por consequência, para o ambiente de trabalho, ainda estão sendo gradualmente mensurados. O que já se pode afirmar com segurança é que essa prática, muitas vezes iniciada como lazer ou entretenimento, tem revelado consequências complexas e crescentes no bem-estar dos trabalhadores.

De acordo com um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 10,9 milhões de brasileiros com mais de 14 anos já jogam de forma a gerar problemas emocionais, familiares, econômicos ou com o trabalho. Desses, cerca de 1,4 milhão de pessoas já apresentaram um padrão de apostas compatível com o diagnóstico de transtorno do jogo, uma condição marcada pelo de desejo incontrolável de jogar, mesmo diante de perdas significativas.

Outro dado que reforça esse cenário é o da Anbima, em pesquisa realizada com o Datafolha, que aponta que uma em cada dez pessoas que apostaram em 2024 apresentaram também alta tendência ao vício nesse tipo de jogo. 

A comunicação massiva e a acessibilidade às plataformas de bets reforça o risco de banalização de um comportamento que pode se transformar em transtorno. O transtorno do jogo, ou ludopatia, já é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma condição de saúde mental, com impacto direto no bem-estar emocional, nas relações pessoais e também na vida profissional.

Um problema que ultrapassa a esfera individual

A diferença entre uso frequente e um quadro de transtorno do jogo está no grau de prejuízo funcional causado pelo comportamento. Segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-11), “transtorno de jogo” é caracterizado por um padrão persistente de comportamento relacionado a jogos, que envolve:

  • Perda de controle: dificuldade em limitar o tempo, frequência ou valor das apostas.
  • Priorização das apostas: preferência contínua pelas apostas em vez de trabalho, estudo ou convívio social.

Outros sinais incluem irritabilidade, ansiedade ou inquietação quando impedido de jogar (sintomas de abstinência),isolamento social ou negligência de autocuidados e responsabilidades. Para configurar transtorno, esses comportamentos devem persistir por pelo menos 12 meses, causando prejuízo significativo no funcionamento pessoal, social ou ocupacional.


Do ponto de vista neurológico, a dependência de jogo ativa o sistema de recompensa do cérebro de forma muito semelhante às drogas e ao álcool. Isso gera um ciclo de reforço difícil de interromper, com alterações nas áreas responsáveis pela tomada de decisão, controle de impulsos e regulação emocional. Consequentemente, o transtorno do jogo torna ainda mais difusa a fronteira entre vida pessoal e profissional, afetando diretamente a
produtividade e o equilíbrio emocional dos colaboradores.


No contexto organizacional, esse quadro se manifesta por meio de faltas frequentes, distração excessiva, queda de rendimento, atrasos, dificuldade de concentração e conflitos interpessoais. Além disso, colaboradores que enfrentam esse tipo de compulsão tendem a estar mais vulneráveis ao estresse crônico e ao adoecimento psíquico. Conforme novo estudo realizado pelo Intercept Brasil, as casas de apostas virtuais foram responsáveis por um aumento de mais de 2.300% nos pedidos de auxílio-doença por ludopatia no Brasil, entre junho de 2023 e abril de 2025.

Comorbidades como ansiedade, depressão e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade)frequentemente acompanham o transtorno de jogo. Em pessoas ansiosas, o jogo pode funcionar como válvula de escape para o estresse; na depressão, pode representar uma tentativa de preencher vazio emocional; e, no TDAH, a busca por estímulos constantes pode levar ao envolvimento rápido e intenso com as apostas. Essas condições aumentam a complexidade do tratamento, exigindo avaliação clínica abrangente e plano terapêutico interdisciplinar(psiquiatra, psicólogo, terapeuta ocupacional e rede de apoio familiar).

A saúde financeira como parte da saúde mental

Dados da fintech Klavi mostram que o número de apostadores inadimplentes no Brasil mais do que dobrou entre 2023e 2024, passando de 4% para 10,6%, um salto de 163%.

A insegurança financeira está entre os principais fatores de estresse emocional, e seus efeitos são perceptíveis no cotidiano das empresas. Segundo a pesquisa PwC’s 2023 Employee Financial Wellness Survey, 56% dos trabalhadores que enfrentam dificuldades financeiras gastam três horas ou mais por semana lidando com essas preocupações durante o expediente. Trata-se de um tempo não apenas desvinculado da produtividade, mas frequentemente atravessado por angústia, dificuldade de concentração, tomada de decisão comprometida e retraimento social.

Embora não seja papel do setor de recursos humanos resolver pendências pessoais dos trabalhadores, uma empresa comprometida com a promoção de saúde e bem-estar precisa reconhecer que a saúde financeira é parte indissociável da saúde mental. Isso significa criar condições para que as pessoas tenham acesso a recursos que favoreçam o cuidado com sua saúde e também a de seus dependentes, além de oferecer informação confiável sobre boas práticas em relação ao uso do dinheiro.

Não se trata de assumir responsabilidades individuais, mas de construir uma cultura organizacional que acolhe, informa e atua de forma preventiva, entendendo que o bem-estar no trabalho começa, muitas vezes, fora dele.

Compromisso com a saúde mental no trabalho

Diante desse cenário, é fundamental que empresas e lideranças estejam atentas não apenas aos resultados aparentes, mas aos sinais menos visíveis que comprometem a sustentabilidade emocional dos times. Cuidar da saúde mental no trabalho também significa compreender a pluralidade de desafios que as pessoas carregam para além do expediente.

Não se trata de responsabilizar as empresas por fenômenos sociais complexos, mas de reconhecer que elas têm um papel fundamental na construção de um ambiente psicologicamente seguro. Isso exige escuta, acolhimento e um olhar sistêmico para fatores que afetam a vida dos colaboradores de forma direta, mesmo que não estejam expressos em relatórios ou indicadores tradicionais.

A dependência de jogo não é um problema individual isolado: é uma questão de saúde pública, que exige atenção, conhecimento e compromisso coletivo. As empresas não poderão resolver sozinhas todos os desafios, mas podem — e devem — ser parte da solução.

  • Luis Gonzalez é CEO e cofundador da Vidalink, empresa de bem-estar corporativo. Camila Magalhães é psiquiatra e cofundadora da Caliandra Saúde Mental.

Fonte: VocêRH